segunda-feira, 4 de junho de 2012

A grande beleza de uma rainha do mal



"Branca de Neve e o Caçador" (Snow White & The Huntsman, 2012) é um entretenimento divertido na maior parte do tempo, que se vale de um visual deslumbrante e de algumas insinuações perversas para recontar uma história manjadérrima: um daqueles contos de fadas pilhados do imaginário popular europeu pelos fabulosos Irmãos Grimm e que foi magnificamente adaptado por Walt Disney, num desenho visto e admirado por todo mundo. Edmund Wilson, o famoso crítico literário, era obcecado por Disney, e o russo Serguei Eisenstein, diretor do clássico "O Encouraçado Potemkin" (1925) considerava "Branca de Neve e os Sete Anões" (1937) o melhor filme de todos os tempos, e melhor elogio que o apreço desses dois senhores eu desconheço.

Muita gente com quem converso me diz que não gosta de filmes fantasiosos, por considerá-los infantis. Puxa vida, caramba. Apontem-me um único filme produzido nos últimos trinta anos em Hollywood que não seja absurdamente fantasioso e infantil. Não estou falando do cinema independente americano, que ainda segura a peteca de um certo realismo-naturalismo preferido por essas pessoas que fazem ressalvas a filmes como a trilogia "O Senhor dos Anéis" (Lord of The Rings, 2001-2003). Spielberg e George Lucas manjaram, cinéfilos que são, o gosto das massas pela diversão escapista. Nada inventaram. Apenas deram ao público contos de fadas adequados à nossa era tecnológica. Ficaram multimilionários assim.

"Branca de Neve e o Caçador" é, claro, puro entretenimento escapista, mas pelo menos diverte com competência, coisa que vários filmes recentes (alguns inclusive indicados ao último Oscar) tentaram fazer, sem sucesso. Não serve para crianças pequenas (estas vão se apavorar). E é um filme de mocinha contra vilã. E que vilã a magnífica Charlize Theron interpreta, calcada, segundo ela, no Jack Nicholson louquinho de pedra no hotel mal-assombrado de "O Iluminado" (The Shining, 1981). Sim, o grande embate do filme é entre a princesa Kirsten Stewart (a Branca de Neve) e a rainha madrasta Charlize Theron (Ravenna) Mas os rapazes podem ver este duelo sem sustos, a muitas léguas de ser um mero "filme de meninas", não é aquela comédia fraquinha que a Julia Roberts fez com o mesmo tema, "Espelho, Espelho Meu" (Mirror Mirror, 2012). Há muitas cenas de combate (poderia ter menos, reclama Roger Ebert, e com razão), tais cenas caberiam em qualquer épico de Mel Gibson pois são uma concessão aos garotos, obrigados a ir aos cinemas a convite das namoradas e que acabam mesmerizados pelo ritmo frenético, sinistro e esplendoroso da primeira metade do filme.

Há várias coisas a destacar. Em primeiro lugar, o tratamento sombrio, mais próximo do conto original. Se o velho filme da Disney acentuava um lado fofinho e encantador, e contrastava-o com a impressionante transformação da madrasta em bruxa decrépita, esta nova versão aposta mais no clima de pesadelo daquela cena inesquecível, criando outras também poderosas, e acerta na mosca. Os contos de fada originais, quem leu na infância sabe, mostram um universo muito mais sinistro e cruel que o de vários filmes de horror. Uma sequência marcante: a fuga da Branca de Neve através da Floresta Negra, as árvores todas se movendo e lançando essências alucinógenas no ar: e a princesa acaba viajando numa "bad trip". Põe bad nisso.

Mas nada me parece mais impactante que a cena de cama entre Charlize Theron e o rei, seu esposo. Quando ela, em pleno leito nupcial, inicia um monólogo na hora do vamos ver, ressentida como uma feminista que discursa contra o falocentrismo patriarcal, momentos antes de sacar um punhal, o que me fez pensar na Sharon Stone de "Instinto Selvagem". Os homens não esperam um discurso desses, típico de jaburu, num pitéu como Theron. A vilã dela, além de assassina vingativa é uma feiticeira poderosa, linda de morrer, de uma gelidez impressionante. Há quem confunda isso com frigidez. Mas a Rainha nutre uma relação incestuosa com o irmão. O incesto entre os dois é apenas uma sugestão (mais ou menos) sutil. Há um diálogo em que ela pergunta para ele se já  não lhe dera tudo, absolutamente tudo que podia dar, e o mano concorda. O verbo "dar" aqui não se refere apenas a poder, luxo e riqueza, meus caros. É o lado mais perverso do filme, que não segue os passos "caretões" da Disney (os personagens tentam fazer sexo, embora ninguém consiga).

A rainha perde a paciência, mas não a majestade, em algumas cenas. Grita com seus lacaios, com o irmão que tenta "lanchar" a princesinha Kirsten, mas esta também reage com um prego pontudo (e fálico, o ressentimento contra os homens deve andar muito em voga em Hollywood). A cara que Charlize Theron faz diante da "traição" do irmão vale o filme. Quem nunca viu uma mulher enciumada desse jeito nunca viu uma mulher, ponto.

Muitos críticos sugerem que o personagem de Chris Hemsworth (o Thor de "Os Vingadores") é sub-aproveitado. O que queriam do cara? Ele é um viúvo bêbado-bosta, metido em mil brigas, recrutado pelo irmão da rainha para caçar a princesa fugitiva, perdida na Floresta Negra, lugar tão nefasto que até a Rainha Madrasta teme. Ele é enganado pela Rainha, que promete ressuscitar sua amada. Mas quando ele finalmente captura a Branca de Neve, hesita, vira a folha e acaba combatendo seus aliados. Decide ajudar a garota a fugir. Aqui o filme quase descamba para uma comédia no estilo "A Princesa e o Plebeu" (Com a qual tem algumas semelhanças, especialmente no desfecho), mas evita a tentação. É claro que o caçador se apaixona perdidamente pela princesa, mas contém o troço dentro de si. Até quem não acredita em conto de fada sabe que a princesa, sangue azul, casará é com o príncipe William, seu amigo de infância. Cria-se um triângulo amoroso que permanece inexplorado, não entra em combustão nem em crise de ciuminho em nenhum momento, acertadamente a meu ver, pois há uma guerra horrenda contra uma feiticeira perigosa em curso, e coisas muito mais urgentes para se preocupar, como enfrentar a morte o tempo todo em combates medievais.

 Mas o que atrapalha totalmente o ritmo da história (até então impecável) é a aparição dos oito anões (um deles, claro, morrerá, e é um barato involuntário do filme tentarmos adivinhar qual), estes anões nem anões são, cortesia dos efeitos especiais, que contribuem para Bob Hoskins e outros ganzelões deixarem desempregados vários toquinhos de gente (Quanta maldade!). Os anões deveriam proporcionar certo alívio cômico na plateia, mas alguma coisa não funciona aqui. Então na sequência seguinte vem um dos momentos mais belos do filme, um passeio pelo coração do Reino das Fadas, com cogumelos olhudos e outras criaturas mágicas deslumbrantes. Há uma cena que guarda uma semelhança assombrosa com aquela da princesa prestes a tocar o unicórnio em "A Lenda" (Legend, 1985), de Ridley Scott.

Cena problemática, a meu ver, além da aparição dos anões chatonildos, é o flashback rápido e inadequado, que mostra o drama pessoal da Rainha, um trauma infantil envolvendo até abusos, que acaba virando justificativa para o comportamento da vilã. Não precisamos saber o que levou uma criatura tão bela a ser tão monstruosa assim. É fácil imaginar a atriz querendo saber a "motivação da personagem" para encarnar o papel com mais naturalismo, mas claro, isso tudo é bobagem. Em conto de fadas a princesa tem que ser pura e boa, já a vilã tem que ser vilã, praticando todas as maldades a que tem direito. Modernizar demais os contos infantis, limando suas asperezas, acaba deixando as crianças confusas quanto à sua moral, como nos advertia Bruno Bettelheim em seu esplêndido livro "A Psicanálise dos Contos de Fadas", observação que também serve para os adultos que frequentam cinemas. É fácil entender a crueldade sem atenuantes da rainha no velho desenho de Disney, o prazer de fazer o mal, a vontade ilimitada de destruir sua rival mais jovem e mais bela, ainda que sacrifique tudo, até a vida no processo. Um exagero? Não creio. Já vi até mulheres feitas pondo toda a vaidade de lado só para puxarem os cabelos de suas desafetas.

Para as mocinhas da plateia talvez as cenas mais assustadoras do filme sejam as que mostram as atrizes envelhecendo inexoravelmente. Há várias discussões interessantes que se podem levantar sobre a questão da perda da beleza, o medo do implacável envelhecimento feminino. Perder a beleza significa perder papéis em Hollywood, todas as atrizes veteranas sabem, e mesmo a lindíssima Charlize Theron. Mas o filme funciona ainda que não se discuta nada, mesmo para aqueles que não enxergam as camadas menos óbvias de seu subtexto. É um belo filme, graças ao talento visual criativo de seu diretor, Rupert Sanders, outro que salta do mundo da publicidade para o universo do cinema. Pois seja bem vindo, seu moço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário