quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Negra Divindade


Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston, é um romance cultuado hoje, tanto por ideólogos de raça como de gênero (as feministas o redescobriram e o vêm promovendo desde os anos 70). Parece até, dizendo assim, alguma chatice politicamente correta. Mas o esplendor do livro transcende todas as colorações (políticas ou epiteliais) de seus admiradores.

O entusiasmo crítico que atualmente cerca o livro não foi o mesmo no período em que Hurston o publicou. Malhado pela crítica dos anos 40, especialmente por Richard Wright, o romancista e crítico, que acusou-o de ser "um romance que fazia na literatura o que os artistas brancos faziam, com a cara pintada de negro, no teatro, ou seja, provocar gargalhadas nos brancos". Engajado no realismo socialista, Wright não enxergava nenhum "tema, mensagem nem idéia" em Seus Olhos Viam Deus. Mas ele estava enganado, claro. O livro transborda de temas, mensagens e ideias. A principal é dar voz a personagens exuberantes, plenos, vivos, como Janie Starks e Tea Cake, simplesmente admiráveis e inesquecíveis.

Outro triunfo de Hurston é a linguagem. Ouvidos devem ficar atentos tanto aos delicados timbres da narração poética quanto às falas prosaicas, musicais, de seus personagens. Zora foi filha do prefeito da primeira cidade inteiramente negra dos Estados Unidos, e pode-se dizer que a experiência dela em meio a seus conterrâneos, bem como suas pesquisas sobre folclore e cultura oral dos negros da Flórida como antrópologa, colaboram para erigir as muitas vozes deste arrepiante romance modernista.

Seus Olhos Viam Deus conta a história de Janie, uma jovem e bela mestiça. A avó teme que ela sofra como as mulheres sofriam na escravidão, e aconselha-a a se casar com um homem respeitável, mas que lhe é indiferente. Zora conhece um outro homem, foge com ele, e apesar de enriquecerem ao construir juntos uma cidade negra a partir de uma grande casa à margem da estrada, ela só conhecerá a felicidade - brevemente - ao se unir a Tea Cake, dez anos mais jovem que ela, um homem cuja natureza ambígua e apaixonada a arrasta consigo para uma vida aventurosa nos brejos, até o desfecho quase apocalíptico do livro.

Um romance arrebatador, do princípio ao fim, como poucas obras-primas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário